Suspiria e a reinvenção do mito da dor
Ou algo sobre essas nossas necessidades de reinventar a roda
Faz uns anos tropecei com um filme que na época me chamou bastante atenção. Era uma proposta de terror diferente do que eu tinha visto até então e mesmo o título já mostrava que partia de um outro lugar — suspiria. Sabia que tinha algo a ver com suspiros e ao terminar o filme, me peguei encantada com a proposta e mais especialmente, com a mitologia desenhada pelo roteiro e, curiosa que sou, fui pesquisar bem mais. Sendo um filme italiano de 1977 dirigido por Dario Argento, de imediato descobri tratar-se de uma proposta ousada: Suspiria fazia parte de uma trilogia denominada pelo diretor como trilogia das mães. Dada que sou a cavar mitos, me encantei ainda mais e fui buscar os outros dois filmes que também poderiam ser vistos de forma independente. Há um intervalo longo entre o segundo e o terceiro filme e, provavelmente, uma dificuldade de recursos nestes dois, o que fez com que Suspiria seja não só o primeiro, mas o mais cuidadoso trabalho da trilogia. Segue-se então Inferno, de 1980 e O Retorno da maldição: a mãe das lágrimas, de 2007. Sem medo de contar algum spoiler, a trilogia fala em sumo do mito das três mães: Mater Suspiriorum, Mater Tenebrarum e Mater Lachrymarum (a mãe dos suspiros, das trevas e das lágrimas). Em 2018 Suspiria ganha um remake de comemoração aos 40 anos da obra original que aprofunda melhor alguns elementos lançados no primeiro filme.
Um mito sobre três mães que regem os campos da dor humana apresentado em três filmes de terror me seduziu em absoluto e precisei ir entender a fonte dessa história. Sem muita dificuldade acabei entendendo que a fonte que origina os filmes é um livro publicado em 1845 chamado Suspiria de Profundis, obra do escritor inglês Thomas de Quincey.
Thomas é conhecido por sua defesa ao consumo de ópio, ele próprio um reconhecido usuário público, sendo talvez um importante autor a registrar sua própria relação com o consumo de ópio numa época em que a inglaterra começava a desenhar parte das hipócritas leis sobre drogas quando, ao investir nos processos de colonização da ásia, vendia ópio para a china ao mesmo tempo em que com discursos moralistas, impedia os chineses de produzir e comercializar entre si a mesma substância. A guerra do ópio que começa em 1839 e entre idas e vindas dura até 1860 é um inesperado pano de fundo das obras de Thomas que aparece nas entrelinhas de seus relatos enquanto um inglês consumidor de ópio. Confissões de um inglês comedor de ópio é um de seus livros publicado em 1821 e que tem Suspiria de Profundis como sequência direta. Gosto de relações que não são óbvias e saber disso tudo me fez gostar ainda mais da trilogia de Argento. Pois que bem, onde então que três entidades bruxas regentes da dor aparecem num relato sobre ópio? Apesar do filme ter o mesmo nome do livro, a história das três mães é apenas um dos contos, chamado levana and our ladies of sorrow. Neste conto, Thomas fala sobre a deusa romana Levana, uma das denominadas deusas domésticas e que, dada sua presença tão cotidiana, não figura no grande panteão que produz filmes e quadrinhos e jogos a lá God of War. As divindades domésticas eram entendidas como responsáveis por interferir em aspectos comuns da vida e levana cuidaria das crianças muito pequenas, sendo responsável por levantar pequenos bebês do chão, o que a faz ser conhecida como a levantadora. A nível simbólico, Thomas começa o conto (também entendido como um poema em prosa)dizendo ser visitado numa madrugada pela própria Levana. Ele pensa então a real importância desta que nos levanta do chão e nos conduz ao próprio processo de humanização, de sair das identificações animalescas e ascender as esferas superiores. No início do texto, enquanto reflete sobre o real papel de Levana em nossas vidas, ele a entende como a própria deusa da educação, não educação dos livros e instituições, mas educação como o atiçar da curiosidade para mostrar mundos muito mais amplos. No seu delírio na madrugada, Levana sempre anda acompanhada por três senhoras também comentadas por ele. Estas sim seriam as nossas senhoras das dores, as quais ele faz uma descrição bonita e breve de cada. Mater Lachrymarum seria a mais velha das irmãs, e com o maior domínio. Sendo aquela que possui todas as chaves ela representa a dor insurgente, capaz de ter força o suficiente para questionar qualquer divindade. A segunda mãe seria Mater Suspiriorum, representação física da dor resignada, ela habita sombras e silêncios. Ela é regente dos campos desolados e das cidades em ruínas. A terceira, Mater Tenebrarum tem um domínio pequeno, mas dentro dele, ela teria poder absoluto. É a mãe das trevas e do desespero e, no mito de Thomas, todo ato desesperado tem um eco de seu sussurro. É a mãe de todos os suicidas e a mais perigosa das três.
Conheci Thomas de Quincey apenas muito recentemente, de modo que me afetou muito conhecer a fonte de um dos meus filmes preferidos. Depois de ler o conto de Levana e as senhoras da dor, algo me soava estranhamente familiar. Não me parecia novo a representação de divindades femininas da dor e com pouco esforço me ocorreu uma linha de similaridades e diferenças bem interessante. Se a dor, a queda e o fracasso são temas tornados tabus em uma contemporaneidade que exige o funcionamento constante de todas as nossas maquinarias, de modo que possamos sempre estar a postos para ser o mais produtivas possíveis, uma celebração da dor como elemento fundamental vai ficando escanteada, patologizada e rechaçada em medicações e ataduras frágeis que nos façam seguir correndo e produzindo ainda que quebradas.
Em setembro, pude fazer um pequeno mochilão pelas cidades históricas de Minas, o que para mim foi um processo de religar algumas porções que faz muito andavam meio soltas dentro de mim. Encontrar uma forma de vida inteira calçada nos tons barrocos fez um eco imenso e emprestou imagens ao que na ocasião eu própria vinha sentindo. Nos vários percursos, uma imagem em especial numa igreja de Ouro Preto na época me atravessou fortemente e me abriu um conjunto de sentidos que ainda hoje sigo processando. Era a própria Mater Dolorosa, a mãe das dores e, diferente do mito de Thomas de Quincey, ela é uma figura muito comum no catolicismo popular que herdei das minhas avós. Ela, apesar de ter um tom barroco e sombrio, é o contrário de ser ameaçadora, o que me diz muita coisa sobre a forma com que nossa cultura popular dos interiores do Brasil lida com a dor.
Nas minhas recentes reincursões pela semântica do catolicismo popular brasileiro, duas imagens me chamam muita atenção, e as duas são interligadas. Um coração sangrando transpassado por lâminas mas ardendo vivo com muitas chamas é elemento ambíguo de produção de vida pelo atravessamento da dor. Acho bonito reverenciar o coração entendendo que este é a porção do sagrado em nós. A imagem do sagrado coração é comum em alguns ritos católicos e especialmente forte em pequenas cidades e algum tempo atrás organizava irmandades. Minha avó inclusive participava da irmandade do sagrado coração e mesmo sem entender, eu achava bonito tudo isso. O coração sacralizado ainda que dolorido é ligado a imagem da própria mãe das dores e aqui não precisava resgatar antigas deusas romanas para justificar a possibilidade de uma representação desses elementos. Em Recife há uma rua no centro da cidade chamada rua da soledad. Não a toa ela tem esse nome, pois abriga a igreja de nossa senhora da soledad. Sempre me intrigou a existência de uma senhora cujo domínio é a própria solidão. Nossa senhora da solidão é pra mim um elemento simbólico denso que nos convida a perceber como a dicotomia humano-divino, imanente-transcendente é mais potente quando atravessada inclusive pelo reconhecimento da dor como elemento fundante do humano.
Se na composição do norte do mundo que produz o terror que em geral consumimos, as senhoras das dores são seres terríveis e inconciliáveis com nossas vidas, nas subjetividades das antigas avós católicas de qualquer interior do Brasil, essas mesmas senhoras quase com os mesmos nomes eram a garantia de validação para dores que, a partir da sua sacralização, passam a ser compartilháveis.
Nos acostumamos a olhar o mundo a partir de nossa perspectiva de presente e, presentificando todas as leituras, acabamos por achar que nossa atualidade é o ápice da evolução (sim, somos profundamente Darwinistas, ainda que neguemos). Não que eu considere desde uma moral, não se tratam de tempos melhores ou piores, mas vou aprendendo que há sempre rachaduras, há sempre dissonância e a vida é sempre muito mais múltipla do que o registro histórico oficial nos faz acreditar. Cabe então pensar o que representa a possibilidade de celebrar a senhora das dores como parte do processo da vida cotidiana em um mundo de temporalidades outras.
Se Suspiria e Thomas de Quincey, com suas senhoras das dores me convidam a temer as minhas próprias dores, a senhora das dores das minhas avós faz o caminho inverso, e me lembra que o único processo de cura possível é pela celebração lenta e esporádica das feridas fundas que carregamos. Se reconhecemos com Jota que o mundo é nosso trauma, legitimar com respeito a ferida é um movimento absolutamente mais potente do que simplesmente a ignorar.
Numa contemporaneidade de correria e produção de urgências e fuga constante a todo momento pelas variadas redes que nos exigem 24 horas por dia, entender os necessários momentos de sentir a dor em seu resguardo e delicadeza é produzir subversão e autocuidado.
Em tempo, este texto me chega num entendimento após esbarrar por acaso numa das músicas que, por hora, considero uma das mais bonitas que já ouvi. Faz parte da gama de composições barrocas e chama Stabat Mater Dolorosa. Me deixar afetar por essa música e ao mesmo tempo lembrar de como revisitei importantes porções minhas nas vias barrocas daquelas cidadezinhas pequenas e velhas, me convida a estar atenta para como a nossa construção de sentidos pode ter caminhos múltiplos e rotas nem um pouco óbvias. Ao passo em que me cansam cada vez mais as trajetórias lineares, simplistas e de um maniqueísmo moral muito mal disfarçado que divide o mundo em bons e maus, vou aprendendo que, se somos nós a emprestar o sentido das coisas e se acredito em piratarias como formas de vida, passo a me sentir absolutamente confortável em criar identificações inclusive com as heranças da produção cultural de um catolicismo que sequer previa minha existência.
Mas fato é que, numa fria manhã de domingo de 2019, me ver de frente com uma enorme Mater Dolorosa esculpida em tamanho real no século XVII me falou algo sobre minhas próprias dores não nomeadas e não expressas, sobre meus silenciosos adoecimentos e também algo sobre conforto.